Há precisamente quatro anos, em 20 de Março, consumava-se o crime longamente premeditado por Bush & Blair, com pré-aviso oficial na célebre cimeira das mentiras dos Açores. E, no entanto, este crime não era inevitável. Durante longos meses, as inspecções da ONU não confirmaram a existência das célebres “armas de destruição massiva” ou, ainda menos, que o Iraque estivesse à beira de possuir armas nucleares. Se as tivesse, aliás, outro galo cantaria…
Mais de uma década de bloqueio impusera enormes sofrimentos ao povo iraquiano, de modo algum minorados pela troca de “petróleo por alimentos”. Mas também enfraquecera o regime de Saddam Hussein que há muito deixara de constituir uma ameaça para a segurança regional – como no tempo em que os EUA o empurraram para uma guerra sanguinária e fratricida contra o Irão.
Um mês antes da invasão do Iraque, em 20 Fevereiro, tivera lugar a maior manifestação global até hoje realizada, em quase todas as capitais do planeta, contra o deflagrar da guerra anunciada. Contra a opinião pública mundial, contra as deliberações do Conselho de Segurança da ONU, a “guerra infinita” já ensaiada no Afeganistão foi-nos imposta como um facto consumado. A razão foi mais uma vez vencida, mas não convencida, pela força bruta dos arsenais bélicos.
Quatro anos depois, na hora do balanço, é preciso dizer que o desastre ultrapassou as previsões mais pessimistas. É certo que o regime de Saddam ruiu como um baralho de cartas: o povo não se ergueu em defesa de uma ditadura odiosa e esgotada. Mas a verdadeira guerra estava ainda para começar, no plano civil e da resistência contra os invasores. A qualidade de vida, a economia e o desemprego que já eram problemas sérios antes da guerra, sofreram um agravamento brutal e não dão mostras de recuperação. No plano político, as eleições realizadas sob a bota dos ocupantes não têm qualquer credibilidade nem podiam contribuir para a estabilização e a unidade do Iraque, dilacerado por uma guerra sectária entre facções étnicas e religiosas – curdos, sunitas e xiitas de todos os matizes…
No plano da segurança e da luta anti-terrorista, um dos argumentos mais utilizados pelos invasores, o caos é total. Além das mais variadas milícias iraquianas, crescem como cogumelos células da Al-Qaeda e de outras organizações que encontraram no Iraque o laboratório ideal. Há dias, o jornal israelita Ma’ariv Daily noticiou que um oficial reformado, Shmoel Avivi, estabeleceu uma firma no Iraque há dois anos, com uma actividade altamente lucrativa na venda de armas a grupos terroristas. O número de mortos entre a população iraquiana é incalculável, mas oscilará entre os 665 mil divulgados em Outubro 2006 e 1 milhão, calculado por médicos e investigadores da ONU, num país que perde todos os meses 100 mil habitantes em fuga desesperada da violência e da morte.
Quanto aos direitos humanos, a invasão do Iraque constitui uma das páginas mais negras desde a II Guerra Mundial. Torturas como as infligidas a prisioneiros na prisão de Abu Ghraib; o massacre de Fallujah, em que as tropas dos EUA utilizaram fósforo branco e outras armas de destruição massiva que dizimaram dezenas de milhares de civis, são apenas alguns dos episódios conhecidos da guerra que constitui, em si própria, o maior crime contra a humanidade neste início do século XXI.
Os estilhaços desta guerra atingem todo o mundo, incluindo os EUA, cujo número de soldados mortos já ultrapassava os 3 mil, no início de 2007. As eleições para o Congresso, em Novembro de 2006, foram um verdadeiro plebiscito contra a política criminosa de Bush, obrigado a sacrificar a cabeça do falcão Rumsfeld. Mas, em vez da retirada das tropas do Iraque, exigida nas urnas e por centenas de milhares de manifestantes, Bush prefere a fuga para a frente com o envio de mais de 20 mil novos soldados para o Iraque, procurando criar um novo e pior facto consumado até ao final do seu mandato: uma escalada guerra no Iraque e, se o deixarem, até ao vizinho Irão…
Hoje, até um juiz do TPI admite que Bush & Blair poderão vir a ser julgados por crimes de guerra. Mas já foram condenados pela opinião pública, tal como os seus parceiros menores Aznar e Durão Barroso – o mesmo que mentiu ao parlamento português, jurando “ter visto as provas” da ameaça iraquiana e hoje, sem a menor vergonha, preside à Comissão Europeia. E é bom não esquecer o envolvimento da GNR no Iraque, consentido por Jorge Sampaio. Está na hora de perguntarmos a Sócrates: porque continuam os soldados portugueses no Afeganistão, onde já houve baixas, ao serviço da NATO e de um regime de narcotraficantes, posto no poder pelos americanos? Ou estará Portugal predestinado a passar por vergonhas como a cimeira dos Açores e os voos da CIA?
Alberto Matos – Crónica semanal na Rádio Pax
1 comentário:
MUITO INTERESSANTE E INSUSPEITO !!!!
Harlan Ullman
Perito militar americano
Especialista em Segurança e Política Externa, é autor, com James Wade, da doutrina "Choque e Pavor" que deu nome à operação dos EUA no Iraque
Conselheiro do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais
Quatro anos após a invasão, o Iraque vive uma guerra civil com várias fontes de violência, diz ao DN o perito americano em Segurança Harlan Ullman. De passagem por Lisboa, o autor da doutrina "Choque e Pavor", que deu nome à operação dos EUA no Iraque, garante que a Casa Branca não usou a sua estratégia, apenas "o slogan".
A sua doutrina "Choque e Pavor" deu o nome à operação dos EUA no Iraque, em 2003. Apesar disso, é um crítico feroz da forma como Washington actuou naquele país. Porquê?
A noção de choque e pavor não é a que foi usada no Iraque. Trata-se de controlar a vontade e percepção do adversário, levando-o a fazer o que queremos e deixar de fazer o que não queremos. Não se trata de combater o exército iraquiano ou outro. Mas o que vimos naquela guerra foi uma tentativa para derrotar os soldados iraquianos e chegar a Bagdad o mais rapidamente possível. As minhas críticas prendem-se com o facto de não termos compreendido a cultura e política iraquiana. Não estávamos preparados para o pós-guerra. O que se gerou foi o caos, violência e instabilidade. E vai ficar muito pior antes de melhorar.
A forma como a Administração aplicou a sua doutrina...
Não aplicou. O que fez foi usar um slogan. Quando vi o nome atribuído à operação dos EUA no Iraque fiquei abismado. O que é interessante é que o ex-secretário da Defesa Donald Rumsfeld pertencia ao grupo de trabalhos. Fiquei chocado por não ter aplicado a doutrina correcta.
Porque não o fez?
Na Casa Branca acreditavam que, chegados a Bagdad, a guerra terminava, os iraquianos assumiam o controlo e não era preciso preocuparem-se com o pós-guerra. Se olharmos para o plano do general Tommy Franks, prevê que 45 meses após a invasão, no Natal de 2006, os EUA só já tivesse 20 mil soldados no terreno.
Quando elaborou a doutrina, pensou nas vítimas que poderia causar?
O objectivo do "Choque e Pavor" era minimizar as baixas. Por isso, não posso responder à sua pergunta. Claro que há baixas, danos colaterais. Não é uma questão de doutrina, é a tragédia da guerra.
Como é que classifica a situação no Iraque neste momento?
Desesperada.
Falaria em guerra civil?
Há várias guerras civis. Entre xiitas, sunitas e curdos. Há quatro ou cinco fontes de violência: rebeldes, terroristas, Al-Qaeda, prisioneiros, iraquianos que recebem dinheiro para fazer explodir coisas. É uma situação muito complicada, tal como os mais recentes relatórios dos serviços secretos concluíram.
Qual é a solução?
Não há nenhuma.
Mas entre enviar mais tropas e retirar, qual é a melhor opção?
Não sei. Se retirarmos amanhã, a situação vai cair numa enorme instabilidade e violência. Esse seria provavelmente o pior cenário. Mas se ficarmos, também se pode agravar. A minha tendência é para ficar, mas o que se passa é uma catástrofe e não há solução. Apenas podemos conter a violência. E nem a Administração, nem o Congresso parecem ver isso. Os democratas criticam a Casa Branca, mas não têm uma alternativa.
Faz parte dos 65% de americanos que acham que os EUA não podem ganhar a guerra
Sim, e achei isso desde o primeiro dia. Não percebemos no que nos estávamos a meter. Como se define ganhar? Eu diria que é deixar um país estável com um governo democrático. Temos de esquecer a ideia de impor uma democracia.
Todos falam de um ataque ao Irão. É uma possibilidade?
Sim.
Os EUA têm meios para mais uma guerra?
Não se trata de mais uma guerra. Se houver um ataque, irá ocorrer no próximo ano contra as instalações nucleares iranianas. É claro que temos meios para o fazer. A probabilidade de o fazermos é baixa, mas não é nula. Bush não vai deixar essa responsabilidade para o sucessor.
Desta vez deviam aplicar a sua doutrina?
Não a deviam ter aplicado da primeira vez. Atacar o Irão pode ser tão mau ou pior do que atacar o Iraque. Trata-se de um país com mais de 70 milhões de habitantes e tem forma de retaliar.
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