quarta-feira, outubro 26, 2005

Esfinges

Finalmente, desfez-se o tabu de uma candidatura anunciada: numa cuidadosa encenação mediática, o Centro Cultural de Belém foi o palco escolhido. A cerimónia mais parecia um acto de posse, senão mesmo de beatificação – ficou a dúvida se tratava de uma “subida aos céus” ou da “descida à Terra” de um arcanjo que, nos últimos dez anos, esteve refugiado nalgum paraíso… E que disse Cavaco Silva? Tudo e nada. Aliás, nada do que possa ter dito é verdadeiramente importante pois, como se sabe, os arcanjos não falam… inspiram as almas dos crentes, já agora com a “mãozinha” tecnológica dos media – afinal estamos na sociedade da informação, em pleno século XXI.
Mais do que as palavras, ficou a mensagem subliminar deste one man show, segundo a expressão autorizada de Maria Cavaco Silva: “A Pátria precisa de mim, como posso recusar-me?” E como poderias tu, Aníbal, dar uma nega à Pátria? As réplicas deste discurso de Estado (ou de estadão) não se fizeram esperar. Quem melhor poderia fazer de porta-voz de Aníbal do que outra figura esfíngica que tem habitado o Sete-estrelo: António Ramalho Eanes, antigo general “cara-de-pau”, antes de comprar óculos de lentes claras. E disse: "Cavaco Silva é a personalidade que melhores requisitos reúne para reconduzir o país à esperança, à mobilização." Quem somos nós para o negar?
É assim, com gente séria e impoluta, que a Pátria será reconduzida a novas epopeias, a novas gestas de 500 que a Providência nos destine. Aliás, com Durão à proa, em Bruxelas, ninguém nos segura, com a devida vénia a G. W. Bush & Condoleeza Rice… Regressando a este rectângulo à beira-mar plantado, depois da coroação em Belém quase se poderia dispensar o ritual das eleições, poupando milhões em tempo de crise e evitando sobressaltos desagradáveis. A democracia é muito bonita, mas talvez “demasiado imprevisível” e nem sempre coincidente com os supremos valores da Pátria. E sabe-se lá o que poderá acontecer até Janeiro, fruto de manobras subversivas dessas esquerdas ímpias e desrespeitadoras de Deus, da Pátria e da Autoridade?
Pois, a conversa ia de vento em popa… mas é hora de descer á terra, caro ouvinte. Sabia que nem sempre as figuras esfíngicas, de que tenho vindo a falar, estão assim desprendidas das realidades e dos valores materiais? Então aqui vão alguns factos que, para si, talvez sejam novidade. Sabia, por exemplo, que até 1997 o general Ramalho Eanes apoiou publicamente as candidaturas da CDU para a Câmara de Grândola – um general patriótico metido com “os vermelhos”? E que, em 2001, Eanes ficou neutro, “em cima do muro”? Só depois da vitória do seu amigo Carlos Beato, ex-secretário-geral do PRD, é que Eanes mudou de cavalo, em 2005 … Sabia ainda que o mesmo Carlos Beato, que acaba se ser reeleito presidente da Câmara de Grândola pelo PS, é o mandatário distrital de Setúbal da candidatura de Cavaco Silva?
Assim se fecha um curioso triângulo de interesses que tem o vértice fixo em Cavaco e, mais uma vez, usou o PS como barriga de aluguer… Mas, afinal, não será esta geometria variável de Eanes e Beato uma prova de independência e isenção do general e do seu ajudante de campo? Infelizmente, caro ouvinte, as razões do posicionamento de Ramalho Eanes em relação à Câmara de Grândola – primeiro CDU, depois neutro, mais tarde PS – são bem mais prosaicas e prendem-se com um empreendimento chamado Soltróia que tem capitais árabes por trás. Uma operação imobiliária pioneira que, após a entrada em força da Sonae em Tróia, ameaça reduzir toda a península e boa parte do litoral alentejano a condomínios privados.
De resto, é conhecido o papel que o PRD desempenhou em 1987, ao oferecer a primeira maioria absoluta a Cavaco Silva. E o apoio de Eanes à candidatura presidencial de Cavaco nem sequer é virgem, pois já se tinha manifestado, sem êxito aliás, em 1996. O importante é que a pré-campanha já iniciada continue a descer à terra, despindo Cavaco da roupagem etérea com que se apresentou no CCB – um exemplo de rigor cavaquista, uma obra orçamentada em 6 milhões e que acabou nos 40 milhões de contos; hoje diríamos 200 milhões de euros, coisa pouca … Do passado ficaram-me imagens como as cargas policiais na Marinha Grande ou na Ponte 25 de Abril, com o meu amigo Luís Manuel Figueiredo atirado para uma cadeira de rodas. Mas o que mais recuso é a imagem de um homem, traçada por ele próprio: “Nunca me engano e raramente tenho dúvidas…”.
Definitivamente, democracia não rima com esfinges… mesmo quando finges, Aníbal!

Alberto Matos – Crónica semanal na Rádio Pax – 25/10/2005

1 comentário:

Francisco marques disse...

Cavaco é mais um da velha guarda, mas digo em verdade com aquilo que penso, mostra ao que nós chegamos em qualidade de lideres que este país tem, um primeiro ministro arrogante, hipócrita e mentiroso, e claro seguidor do neo-liberalismo e populismo como poucos, que venha Cavaco, pelo menos dentro da direita é dos que se aproveita deste pessimo vendavel que é a politica actual.

FM