terça-feira, janeiro 03, 2006

Thierry - o futuro?


Cavaco Silva está de visita ao distrito de Beja e, pelos vistos, a agricultura vai ser o prato do dia. A jornada começou em Almodôvar: seria interessante ouvir o que tem Cavaco a dizer a centenas de pequenos agricultores de São Barnabé e Santa Cruz que viram os seus haveres totalmente destruídos no incêndio de 2003, durante o consulado de Durão & Portas – hoje apoiantes da sua candidatura. As indemnizações prometidas tardaram e não abrangeram os mais necessitados, tal como a “conta de solidariedade” aberta pela Câmara PSD de Almodôvar e cuja prestação de contas ainda está por fazer. Mas como não há vergonha nesta campanha eleitoral, nada disto o impede de se apresentar como “salvador da Pátria” ou até como “bombeiro-mor” do reino…
Depois do almoço bem regado com empresários, em Beja, Cavaco segue para Alqueva, onde não deixará de recordar o já longínquo ano de 1993, quando anunciou a decisão política de avançar com a barragem – ao fim de oito anos de governação do professor. Em 1987, Cavaco não hesitara em fazer chantagem: “Alqueva só avança se a reforma agrária acabar”. E cumpriu, já que o esbulho do ministro Álvaro Barreto às cooperativas culminou com a reforma agrária amputada da Constituição, na revisão de 1989, a meias com o PS – com quem havia de ser?
No lago de Alqueva, o professor certamente não vai imitar os ímpetos de um outro seu apoiante, Marcelo Rebelo de Sousa, que se atirou ao Tejo na campanha eleitoral para a Câmara de Lisboa; a coisa não correu bem e terminou em naufrágio eleitoral… Mais comedido, Cavaco evocará a “visão estratégica” que o fez anunciar a construção da barragem (só concluída em 2002) e não poupará loas ao futuro da agricultura portuguesa que se propõe garantir, em parceria como o governo Sócrates. O problema é que, para além do betão, o futuro está quase todo em aberto no que toca ao empreendimento de fins múltiplos de Alqueva, em particular à sua vertente agrícola.
Por falar em futuro, é pena que o périplo de Cavaco Silva ao distrito de Beja não inclua a zona do Brejão, no concelho de Odemira. Aí sim, poderia ser confrontado com uma viagem no tempo até ao início da década de 90. Com pompa e circunstância, o então primeiro-ministro inaugurou a Odefruta e não foi parco em palavras: estava ali o futuro da agricultura portuguesa! Centenas de hectares cobertos de estufas, utilização intensiva dos solos com fertilizantes químicos, mobilização de mais de um milhar de trabalhadores, fazendo prosperar engajadores de mão-de-obra barata que iam recrutar pessoal a mais de 100 quilómetros de distância.
A coisa durou pouco mais de um ano, o suficiente para o milionário francês Thierry Roussel deitar a mão a um milhão de contos – 5 milhões de euros! – em fundos comunitários e ajudas do Estado português e “dar às de Vila Diogo”… Eis o protótipo do empresário de sucesso da era cavaquista que iniciou a sua carreira com a princesa do Mónaco e, depois desta breve passagem por Portugal, seguiu para a Nigéria; ao que parece, continua no continente africano e com faro para os negócios. No Brejão ficaram milhares de contos de salários em atraso, a factura do desemprego e dívidas à segurança social, além dum monte de plásticos rasgados pelo vento…
Por este desastre social e ecológico que perdurou quase até ao fim do século, ninguém respondeu: nem o espertalhão do Thierry, nem quem deu cobertura política e orçamental a esta negociata. Mas a economia, como a natureza, têm horror ao vazio. No lugar das estufas abandonadas, empresas espanholas, inglesas, alemãs, holandesas e umas poucas portuguesas produzem hoje morangos, framboesas, alfaces, flores e toda uma gama de produtos hortofrutícolas que abastecem os mercados europeus. Os engajadores ainda lá continuam, mas os “engajados” já não são portugueses: búlgaros, ucranianos, moldavos, romenos, cazaques, marroquinos, etc., constituem uma legião de mão-de-obra barata e descartável, em boa parte clandestina e desprovida de direitos.
É este o modelo agrícola que ameaça a estender-se a toda a zona de Alqueva, sobre as cinzas da reforma agrária destruída por Cavaco e na ausência de uma reestruturação fundiária para a qual o governo Sócrates não tem asas… nem vontade política. Por tudo isto, seria bom que Cavaco Silva fosse ao Brejão, onde ainda paira a sombra do seu protegido Thierry Roussel.
Decididamente, não é este o futuro que queremos, nem para a agricultura, nem para o Alentejo.

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