terça-feira, novembro 15, 2005

Lá dentro

Ontem tive oportunidade de participar, a convite das técnicas do Instituto de Reinserção Social e da Directora do Estabelecimento Prisional de Beja, numa das habituais “Conversas com Café” que, às segundas-feiras, aí costumam ter lugar. Desta vez, o tema era racismo e discriminação, a pretexto de duas datas próximas: o 9 de Novembro, Dia Internacional contra o Racismo; e o 16 de Novembro, Dia Internacional pela Tolerância. O mais importante, claro está, foi a participação voluntária de mais de duas dezenas de reclusos, dando assim testemunho da cidadania como condição humana de que nunca devemos abdicar, mesmo em situações limite como as que se vivem dentro da prisão.
Embora a instituição convidada para esta “conversa com Café” fosse a “Solidariedade Imigrante”, registei com agrado a presença de mais de 50% de portugueses, alguns conhecidos do dia-a-dia de Beja, numa plateia que incluía cidadãos de diversas origens: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Lituânia, Espanha, Cabo Verde, Ucrânia… e talvez tenha esquecido alguma!
Como o tema era Racismo e discriminação, ninguém melhor para começar do que o “João” (nome fictício), moçambicano de 49 anos, chegado a Portugal em 1976 e que espera recuperar a liberdade dentro de alguns meses. Falou-nos do racismo “puro e duro”, o mais primário, aquele que toma como pretexto a cor da pele, em Portugal e na sua terra natal, cuja independência sempre apoiou. Mas também nas feridas da descolonização, lá como cá: entre milhares (brancos ou negros) que regressaram a Portugal, muitos viram recusada a nacionalidade portuguesa, apesar de terem sido bombardeados durante décadas com a propaganda do “Portugal d’aquém e d’além-mar em África”. Palavras reiteradas pelo “Pedro”, angolano possante, de pele curtida por ventos agrestes que nos trouxe novas imagens da opressão colonial sobre o povo africano, mas também das várias “Covas da Moura” deste rectângulo à beira-mar plantado: “Sabes o que é ser parado numa operação stop, com uma arma apontada à cabeça, só porque és preto?”…
A roda seguiu, noutro tom e para outras latitudes: “Gintautas”, da Lituânia, com reservas sobre a capacidade de integração dos africanos na sociedade europeia, o que deu viva polémica... “Pedro”, cidadão espanhol, residente em Sevilha, filho de pais galegos e nascido na Venezuela – um mosaico que enriqueceu o debate, com a experiência dos magrebinos, usados como mão-de-obra barata na agricultura, nomeadamente na Andaluzia, segregados pelos seus hábitos (desde as vestes ao Ramadão) e, ao mesmo tempo, acusados de não se integrarem na sociedade espanhola, quando não de serem todos “potenciais terroristas”… Como em Angola, lembrou o “Pedro”.
Discutiu-se também o conceito de “integração”, recusando a normalização de costumes e a total aculturação dos imigrantes pela sociedade de acolhimento. Não se trata só de “tolerância” para com outras manifestações culturais ou religiosas, numa sociedade pretensamente “multicultural” em que as minorias vivam “no seu canto”, no seu gueto, de preferência sem darem muito nas vistas… O desafio que hoje está colocado a sociedades em queda demográfica e em envelhecimento acelerado, como na Europa, é o da inter e até da transculturalidade que poderão regenerá-las e enriquecê-las, no respeito dos direitos humanos e de Constituições democráticas e universalistas. Foi apontada a riqueza do caldeirão étnico do Brasil (que, por mero acaso, não tinha nenhum representante naquela sala), onde o racismo continua bem presente, quase dois séculos depois da independência…
Do racismo passou-se ao tema mais geral da discriminação, ou melhor, das discriminações. Porque elas são múltiplas, até dentro da própria cadeia: alguém disse que a uns calhava sempre “a faxina”, enquanto outros apanhavam os melhores trabalhos, alguns até remunerados. Mas, sobretudo, lá fora: o que é arranjar trabalho para um ex-recluso ou, até, para um toxicodependente que nunca esteve preso, sobretudo quando o desemprego oficial ronda o meio milhão. Apesar de todas as vicissitudes, “a esperança é a última coisa a morrer”, sobretudo para quem está privado da liberdade.
“Liberdade”, tema sempre presente nos dois momentos de poesia que animaram esta sessão, com leituras de Bocage, David Mourão Ferreira – “E por vezes...”, Afonso Duarte – “Horas de saudade”, Jorge Arrimar – “Desesperança”, Manuel Alegre – “O Canto e as Armas” e Camões – “Soneto”. Algumas lágrimas rolaram pelas faces endurecidas por uma vida madrasta, mas onde ainda não se apagou a chama da esperança e da liberdade, entrevista para além das grades…

Alberto Matos 15/11/2005

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