quarta-feira, abril 05, 2006

Couves e Alforrecas e a Crítica Literária

Couves & Alforrecas: Os Segredos da Escrita de Margarida Rebelo Pinto, um livro de João Pedro George, tem feito por um lado correr rios de tinta e por outro, minutos de televisão e rádio. No seu blog, esplanar, George, tem escrito sobre este caso. Retirámos daquele blog, um dos seus últimos posts que consideramos interessante sobre a crítica literária.
Crítica Literária: uma perspectiva sociológica
Quem escreve - a maioria - quer ser publicado. Mas não só. Ou melhor, não chega. Sem o reconhecimento da crítica, nada feito. Há dois momentos que definem a identidade (neste caso a identidade de escritor): o sentimento do seu próprio valor como escritor e o reconhecimento de outrem, ou seja, das instâncias de consagração, como a crítica. A confirmação do valor próprio pelos outros é uma dimensão essencial da identidade, seja ela de escritor ou outra. Daí decorre a importância da crítica. Para que um texto seja considerado, socialmente, como literatura é necessária a aprovação das instituições literárias. Sem a interferência da crítica, um livro pode existir mas não é literatura; dito de outro modo, um livro só se torna literatura quando é reconhecido e exibido como tal.É nesta ideia que se joga uma premissa básica da Sociologia da Literatura: o carácter literário é definido não tanto como uma qualidade intrínseca dos objectos (os textos) mas antes como resultado de um processo de definição social. Assim, o valor não é uma característica inerente aos objectos, é antes e acima de tudo um juízo sobre eles que reside no sujeito: «A beleza não está na natureza dos objectos mas na nossa própria subjectividade» (Espinoza) ou «Nós não admiramos a Vénus de Milo porque ela é bela; ela é bela porque nós a admiramos» (Charles Lalo). Tanto assim é que as avaliações estéticas mudam de época para época, ou seja, um livro pode não possuir estatuto literário num determinado contexto histórico-cultural mas pode vir a adquiri-lo mais tarde (autores ignorados em vida mas posteriormente recuperados). E vice-versa. O valor não é algo conquistado de uma vez por todas e de forma inequívoca. Está sujeito a variações. Os clássicos greco-latinos, por exemplo, precisaram de esperar pelo Renascimento para readquirirem valor, para ganharem outro fôlego. E nada nos garante que daqui a uns séculos (se ainda por cá andarmos) não venham a perder novamente o elevado prestígio de que hoje usufruem.A qualidade literária atribuída a um livro depende da quantidade de atenção que lhe é dedicada pelas instituições literárias. Quanto maior a diversidade de opiniões, quanto maior a legitimidade (autoridade) dos críticos que as proferem e quanto maior a reputação dos sítios onde elas são publicadas, maior o valor literário de uma obra e de um escritor. Logo, a atribuição de valor literário é socialmente determinada; está dependente de factores sociais. E, sendo assim, na valorização de um livro o que é decisivo é o número de discursos críticos e não, como geralmente se assume, as suas supostas qualidades intrínsecas (em Teoria da Literatura, Wellek e Warren defendem que os alicerces em que devem assentar as classificações literárias são as «propriedades intrínsecas» presentes nos textos, propriedades essas passíveis de serem detectadas por um leitor especializado).Como os críticos não conseguem provar as qualidades da obra literária (as suas afirmações têm por base afirmações normativas e valorativas que não são susceptíveis de verificação nem de falsificação, ou seja, não são empiricamente testáveis), é tudo uma questão de crença. Trata-se de convencer os leitores em geral (bem como os outros críticos e os escritores) de que uma obra é literatura (boa, muito boa, excelente, etc) e, portanto, merecedora de atenção.Nos jornais não existe uma autoridade formal nem mecanismos de credenciação para determinar quem possui qualificações para exercer a actividade de crítica de livros (daí a importância dos favores e das ligações interpessoais na obtenção de empregos e de oportunidades, o que faz com que todos precisem uns dos outros e sejam mutuamente dependentes). Ainda assim, é possível estabelecer diferenças entre críticos (ex: quais os que possuem maior capacidade de suscitar adesão, quais os que têm maior poder de persuasão). Em primeiro lugar, tendo em conta indicadores de natureza social, como:1) prestígio do jornal, da revista ou da editora em que o crítico escreve;2) profissão do crítico (por exemplo: professor universitário);3) a sua experiência como crítico, ou seja, a regularidade da sua intervenção;4) a dimensão do espaço que lhe é conferido nessas publicações para exercer a sua actividade.Em segundo lugar, indicadores de natureza retórica, também eles responsáveis, como é óbvio, pela plausibilidade da crítica:1) a qualidade da sua escrita;2) o nível de erudição que ostenta/referências à tradição literária;3) a terminologia utilizada para descrever e analisar as obras;4) as estratégias argumentativas.São estes, em suma, alguns dos indicadores responsáveis pelo sucesso de um crítico e pela sua aceitação por parte dos críticos (os outros), dos escritores e dos leitores em geral. Tal aceitação acontece, por exemplo, quando a caracterização e análise que ele faz de um livro ou de um autor são adoptadas por outros críticos. A aprovação dos colegas, aliás, é a confirmação mais alta do valor dos seus juízos críticos (daí que a audiência privilegiada pelos críticos seja a dos outros críticos). Na verdade, um crítico pretende não apenas produzir, nos leitores, a crença no valor que ele atribuiu a um livro como também produzir uma crença no seu próprio valor enquanto crítico e enquanto especialista com competência para considerar um livro como literatura (ou como não literatura). Se os críticos fazem a reputação dos escritores, estes, por sua vez, também fazem a reputação dos críticos: os autores (principalmente aqueles com muito prestígio) ao aceitarem um discurso crítico (por exemplo, convidando um crítico para prefaciar um livro) aceitam simultaneamente a autoridade do crítico e a sua legitimidade para avaliar literatura. Logo, a carreira de um crítico está intrinsecamente ligada ao sucesso dos autores que ele valoriza.Como medir o reconhecimento de um autor?1) vários críticos falarão do mesmo livro (analisá-lo-ão), esse e outros livros do mesmo autor;2) o público leitor comprará o livro;3) o autor obtém apoio financeiro através de bolsas e prémios;4) as editoras interessam-se por reeditar o livro e asseguram a publicação dos livros seguintes;5) o escritor passa a constar em antologias;6) é incluído nos curricula dos liceus e das universidades;7) consta nas histórias e nos dicionários de literatura.Um livro que cumpra todos estes requisitos merece, provavelmente, a designação de obra-prima e tem garantido um prazo de validade mais alargado. Decisivas, a esse respeito, são as alíneas 5), 6) e 7). Um livro que se fique pelas quatro primeiras alíneas tem um prazo de validade reduzido (não obstando a que no futuro possa ser recuperado e objecto de canonização).A crítica pode ser dividida em três espécies (complementares entre si):1) Jornalística;2) Ensaística;3) Académica.Uma obra que não passa pelo crivo destes três níveis de crítica corre o risco de cair no esquecimento. Hierarquicamente, a crítica jornalística é a menos prestigiada e aquela que possui menos autoridade, ao passo que a crítica académica tende a ser a mais legítima e aquela com maior estatuto social. Ora, a primeira tende a ser repreendida pela segunda como superficial e como incapaz de prestar atenção suficiente às obras importantes. Dito de outro modo, a crítica académica considera os seus critérios de selecção, interpretação e análise mais adequados dos que aqueles em que se estriba a crítica jornalística. Todavia, nenhum dos três níveis de crítica pode dizer que possui, em relação aos outros, uma melhor capacidade selectiva. Todas elas assentam em bases epistemológicas e metodológicas muito frágeis e se baseiam em premissas normativas e em juízos de valor sobre o que deve ser a boa literatura. Como é óbvio, uma afirmação assente em juízos de valor não é testável empiricamente, não pode ser nem confirmada nem falsificada. Logo, não há razão para nenhuma delas se assumir como mais bem fundamentada, como mais acertada ou como mais objectiva. Assim se percebe que os desacordos entre discursos críticos raramente sejam eliminados através de uma discussão racional ancorada em argumentos empíricos.Não se pretende com isto que a crítica deve proceder de outra forma. Apenas que talvez seja útil não esquecer estes aspectos quando falamos de crítica e questões adjacentes. E que o reconhecimento da crítica jornalística (que acompanha, comenta e analisa a literatura contemporânea, aquela que vai sendo publicada todas as semanas e todos os meses), apesar de todos os diagnósticos pessimistas e de todos os discursos da crise, continua a ser fundamental na criação da identidade dos escritores.Para uma análise mais desenvolvida, aconselho os textos de Cees J. Van Rees: "How a Literary Work Becomes a Masterpiece: on the threefold selection practised by literary criticism", Poetics, vol.12, nº 4/5, 1983, pp. 397-417 e "How Reviewers Reach Consensus on the Value of Literary Works", Poetics, vol.16, nº 3/4, 1987, pp.275-294.

1 comentário:

Francisco marques disse...

Só me dá vontade de rir, quando fala-se de editoras e estado e partidos sobre a cultura.

Nem um defende que a cultura tenha pelo menos 1% do PIB, depois temos isto, escritores light a ser lidos porque é chato pensar, a culpa é de quem, não será dos politicos que acham a arte um bem comercial, ora aí tem, os jovens a cada dia menos cultos e a ler menos e o pouco que lêem é aquilo que não faz pensar ou é demasiado vulgar.

Ora continuem, Manguito para os politicos.

FM